domingo, 30 de novembro de 2014

Símbolos do repouso da Terra úmida



1. O Vinho do Espírito[1]
Tanto os filósofos quanto os críticos literários ficam bastante desconcertados com o fato de Bachelard gastar uma parte significativa de sua investigação sobre os devaneios de repouso no elemento Terra com o vinho dos alquimistas (1990a).
A transformação da água em vinho tem uma longa tradição poética e esotérica, inclusive na tradição cristã. A taberna mística e os vinhos também. Trata-se de uma imagem da tradição da poesia sufi da Pérsia, presente em vários poemas de Rumi e nos Rubaiyat de Omar Khayyam[2]
Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã.
Apanha um grande copo cheio de vinho,
Senta-te ao luar, e pensa:
Talvez amanhã a lua me procure em vão.  (estrofe 5)

Hoje os meus anos reflorescem.
Quero o vinho que me dá calor.
Dizes que é amargo? Vinho!
Que seja amargo, como a vida. (Estrofe 10)

A mesma experiência subjetiva dos versos está presente em outros universos de eventos como, por exemplo, a preparação da Ayahuasca[3], o vinho do espírito (tradução literal do quíchua: aya, 'espírito' e waska, 'vinho'). A Ayahuasca, no entanto, não é um vinho, nem uma bebida fermentada, mas uma dupla cocção do cipó Jagube (Banisteriopsis caapi) e da folha da Rainha (Psycotria viridis). Ela, no entanto, também avinagra em virtude de calor e necessita dos mesmos cuidados dos vinhos e das bebidas fermentadas em geral.
O cipó representa o princípio masculino (a força) e a folha, o princípio feminino (a luz). Por isso, eles são colhidos e preparados separadamente por homens e mulheres em regime ritual. Nesse trabalho de preparação do material, há o desenvolvimento de qualidades intrínsecas a cada gênero. Colher e limpar cada folha exige das mulheres aplicação, constância, delicadeza e atenção; enquanto entoam canções.
Enquanto isso, para tratar e macerar o cipó, os homens exercitam um ritual de força e resistência, onde o mais importante é aprender a trabalhar com inteligência. No ritual masculino denominado de ‘batição’, o cipó é macerado com marretas de madeira, com todos cantando e batendo no mesmo ritmo. Os braços se levantam juntos, impulsionados pelo retorno do impacto e descem pela força da gravidade, quase sem exigir esforço dos participantes. Os homens procuram manter o foco da batida nas extremidades do cipó, aonde ele se abre com facilidade. Caso alguém tenta exagerar na força, sem resultados serão negativos: ele se cansará rápido, perderá o ritmo coletivo e não conseguirá macerar o cipó adequadamente. É, portanto, um ritual que ensina o uso inteligente da força através da resistência.
Após a preparação, o cipó e a folha são colocados nas panelas em camadas sobrepostas. A água é outro fator importante. A água da chuva é a mais alcalina. Na Amazônia colhe-se a água da superfície dos igarapés mais fundos. Geralmente, há um responsável pelo fornecimento e qualidade da água, que pode contar com ajudantes. Ele é quem, pessoalmente, enche as panelas.
Também há um especialista responsável pelo fogo. Ele deve conhecer os rumos dos ventos, os tipos de madeira, as manhas das chamas. Também tem ajudantes para cortar a lenha, retirar as brasas e limpar a fornalha das cinzas e do carvão que possam obstruir a força das labaredas. Usam pás e espetos longos, alguns usam óculos escuros para olhar para interior do fogo e melhor poder manobra-lo.
“O fogo sobe, a água desce”. Se olharmos a casa aonde se realiza a preparação da Ayahuasca de lado, veremos as labaredas do fogo na parte de baixo e a caixa d’água acima da edificação. No centro, ponto de encontro da pressão da gravidade da água e da pressão aérea de calor e fumaça ascendentes, está o caldeirão principal e as panelas fumegantes do primeiro cozimento. Elas são supervisionadas por cozinheiro responsável e por ajudantes/aprendizes que colocam e retiram as panelas segundo suas ordens. Eles conhecem os cheiros, os pontos de cozimento, os momentos certos de fogo brando e de fogo forte.
E quando o trabalho encontra o poder, a riqueza se manifesta. Todos os participantes do ritual de preparo – homens, mulheres, trabalhadores da água e do fogo, cozinheiros e ajudantes – tomam a bebida enquanto a fazem. E cantam. As canções mesclam imagens religiosas com os ideais de solidariedade universal e de consciência ecológica. São os ‘hinários’ - coletâneas de canções religiosas em que as experiências espirituais e biográficas dos poetas-músicos ayahuasqueiros ficam gravadas, para ser revividas por todos nos rituais. Assim, as lições vividas e o aprendizado tornam-se arte e memória musical.

Vinho, bálsamo para o meu coração doente,
Vinho da cor das rosas, vinho perfumado
Para calar a minha dor. Vinho, e o teu alaúde
De cordas de seda, minha amada. (Estrofe 66)

No plano mental: a imaginação formal interpreta os arquétipos através da linguagem. Os cânticos celebram o Divino Pai Eterno; a Virgem Maria, chamada de Rainha da Floresta; Jesus Cristo, sincretizado com o fundador do culto ayahuasqueiro e com a própria bebida consumida. É o ‘mestre ensinador’ - inteligência cósmica com quem todos se comunicam telepaticamente através da bebida. Apesar das imagens cristãs, os cantos são alegres, xamânicos, panteístas; distante da ideologia de culpa e sofrimento que caracteriza o cristianismo institucionalizado. É uma reinterpretação popular ameríndia da religião colonizadora, que, apesar de aparentemente ingênua e inocente, mostra a universalidade de seus símbolos de forma poética e musical.

Alguns sábios da Grécia sabiam propor enigmas?
É absoluta a minha indiferença por tanta inteligência.
Dá-me vinho, minha amiga; deixa-me ouvir o alaúde,
Olha como lembra o vento que passa, como nós. (Estrofe 87)

A Ayahuasca promove uma expansão na consciência (o sonhar) que, sem perda da ação voluntária, permite que se observe o próprio sentimento e pensamento com maior clareza (a imaginação simbólica). E a experiência exterior com os elementos leva experiência elementar interior (a sensibilidade). No decorrer do ritual, o estado de consciência intensificada pela bebida amplifica as situações recorrentes da vida cotidiana, revelando contradições existenciais e processos interiores que se repetem inconscientemente em diversos níveis: corporais, mentais, emocionais e espirituais. Esses processos involuntários são compreendidos pela consciência intensificada dos participantes, através da corrente formada pelos hinos e pela sincronia entre as atividades práticas do preparo, sempre sugerindo soluções positivas para os problemas colocados.
Bebe vinho, ele te devolverá a mocidade,
A divina estação das rosas, da vida eterna,
Dos amigos sinceros. Bebe, e desfruta
O instante fugidio que é a tua vida.
Bebe o teu vinho. Vais dormir muito tempo
Debaixo da terra, sem amigos, sem mulheres.
Confio-te um grande segredo:
As tulipas murchas não reflorescem mais. (Estrofes 38 e 39)

E é a reunião do calor humano (a sublimação das almas) com a luz divina revigora a vida. À noite, todos, homens e mulheres, se reúnem para cantar em torno do caldeirão principal – símbolo de poder e de transmutação elemental - e das panelas de cozimento. Uma fumaça branca e doce evapora de suas bocas borbulhantes. Das nuvens de fumaça esbranquiçada emergem ‘mirações’, imagens simbólicas, as visões psíquicas provocadas pela Ayahuasca e por seus cantos.

Ninguém desvendará o Mistério. Nunca saberemos
O que se oculta por trás das aparências.
As nossas moradas são provisórias, menos aquela última.
Não vamos falar, toma o teu vinho. (Estrofe 26)

Há uma grande diferença entre uma alucinação e a miração, ou as imagens que emergem do inconsciente durante o uso ritual da Ayahuasca. A alucinação é uma distorção cognitiva provocada por entorpecente. Enquanto a miração provoca devaneios simbólicos e sonhos lúcidos.[4]
A miração tem uma série de características cognitivas bastante específicas. Em primeiro lugar, percebe-se que os pensamentos não são individuais, mas sim ‘recebidos em rede’, que a mente funciona como um rádio: a percepção do pensamento se revela uma cognição coletiva. Também não há distinção entre o interior e o exterior, entre o sensorial e o sensível. E, em decorrência destas duas percepções (da mediunidade do pensamento e da indistinção entre o micro e o macro), podem acontecer experiências radicais des-indentificação pessoal. As pessoas podem se transformarem em animais, árvores, pedras ou em outras pessoas.
Mas a característica cognitiva mais importante do efeito da Ayahuasca é a experiência de tempo não-linear. Sob o efeito da Ayahuasca, se percebe o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a sensação de eternidade) temporal. A Ayahuasca nos recoloca dentro da sincronicidade.
Utilizando o esquema dos quatro elementos também se pode pensar um modelo de quatro estados de consciência diferentes sobrepostos e simultâneos no trabalho espiritual com a Ayahuasca: Fogo, a luta do bem contra o mal; Água, a compaixão pelo sofrimento do mundo; Ar, o diálogo/conflito do Eu com o Outro; e Terra, a Consciência Viva da Divindade. Esses temas e níveis elementais se alternam e sobrepõem dentro de viagens sucessivas. A alquimia exterior se torna desenvolvimento interior e a transmutação de água em vinho corresponde também à transformação de seus feitores. É a Ayahuasca que faz seus feitores.
Logo as imagens se dissipam na fumaça das panelas e, após grandes viagens, os participantes voltam onde sempre estiveram: cantando. O efeito da bebida se dá em ondas, ora sonhamos, ora celebramos, mas sempre estamos cantando. Aos poucos, no entanto, os intervalos se tornam cada vez maiores, enquanto o fogo morre e os homens tiram o líquido dourado das últimas panelas, engarrafando-o com cuidado e reverência. A usina de sonhos e energia desliga seus motores mágicos: a terra esfria, a água escorre e seca, o fogo dorme e o vento sopra as últimas nuvens de mirações.

Rosas, taças, lábios vermelhos:
Brinquedos que o Tempo estraga;
Estudo, meditação, renúncia:
Cinzas que o Tempo espalha. (Estrofe 120)

2. A Inveja do Útero
É notável que os psicanalistas pensem que as mulheres tenham inveja do pênis! Talvez, a verdade, seja justamente o contrário.
Do ponto de vista do desenvolvimento pessoal, as mulheres levam uma grande vantagem sobre os homens. Todos os meses, elas passam por um processo biológico de morte e renascimento; enquanto os homens não contam com essa vantagem, são mais lineares e precisam se esforçar para produzir condições semelhantes. O xamanismo tolteca ressalta o papel espiritual do útero, visto como um órgão sensorial voltado para a atividade de sonhar. A imaginação desvairada, o delírio e a loucura histérica seriam disfunções uterinas.
Para simular um útero e as mesmas condições propiciadas pelo incentivo biológico feminino, os homens necessitam viver segundo a lua e as marés, seguindo seus ciclos de regulação da água. Através da observação e sincronia com a lua, segundo vários tipos de xamanismo e de saber ancestral, os homens conseguem se equiparar às mulheres na arte do sonhar. No xamanismo tolteca, ‘sonhar’ significa entrar em sintonia com a terra, com o sagrado feminino. A terra, como organismo vivo se comunica através dos sonhos com outros viventes. Mas, os homens se afastaram da natureza e apenas algumas mulheres de útero aguçado conseguem escutá-la.
Será que o útero está na raiz de todas as imagens de recolhimento e repouso, símbolo universal de intimidade e de retorno ao universo primordial?
O símbolo do útero extrapola bastante o arquétipo de acolhimento e proteção (o complexo de Jonas, de Bachelard). No mito da caverna de Platão, por exemplo, o útero, como um véu lunar da realidade sensível, impede que se veja a realidade inteligível e solar. Ele significa acolhimento e proteção, mas também aprisiona seus protegidos em um tipo de confinamento cognitivo.
Freud cometeu o erro de pensar que os ‘símbolos axiais’ eram 'símbolos fálicos'. Mas, as espadas, torres pontiagudas, cruzes, cetros e até o ‘ligam’ indiano, que realmente é representado por um pênis – são na verdade símbolos do eixo do universo (Axis Mundi), como demonstrou Rene Guenon (1989,277-293). Os totens, por exemplo, com várias cabeças sobrepostas representam os diferentes mundos e em torno do qual se dança, canta e se ascende a níveis superiores.
Também para o historiador das religiões Mircea Eliade (1992, 295-312), a noção de 'Centro do Mundo' faz parte do universo de praticamente todas as sociedades arcaicas. O universo foi criado a partir desse centro e é uma passagem tanto para os infernos subterrâneos como para regiões celestiais. Tal é o sistema simbólico das sociedades tradicionais, do qual derivam as imagens cosmológicas, os mitos e concepções religiosas nas mais diversas culturas: os pilares, as montanhas sagradas, as árvores da vida, as escadas cósmicas são representações do Axis Mundi, em torno do qual o universo se organiza. Para os judeus, o monte Tabor é o Centro do Mundo; enquanto, para os gregos, é o Olimpo. O monte Meru dos hindus, o Himinghjor dos germânicos, o Haraberezaiti dos iranianos, a Kaaba dos islamitas, Jerusalém para os cristãos – todos são passagens verticais para outras dimensões e se situam no Centro do Mundo dessas cosmovisões. Eliade acredita ainda que nas sociedades mais antigas a “imagem visível deste pilar cósmico é, no céu, a Via Láctea”, que se expande a partir da constelação da Ursa Maior (polo norte estelar, possivel local do 'Big Bang') e se direciona para um buraco negro abaixo da constelação do Cruzeiro do Sul (polo sul estelar).
Então, não estaríamos cometendo uma versão feminina do mesmo erro de Freud, pensando que o útero é um símbolo demiurgo do elemento terra? Que ele está na base das representações da intimidade e dos devaneios de repouso?
Para Eliade (1992, 313), o lar é uma 'Imago Mundi', um micro universo que reflete o macro universo, um local de intimidade cósmica. Nas sociedades arcaicas e tradicionais, o templo ocupava essa função. Com a desacralização promovida pela modernidade, o sagrado refugiou-se no aconchego do lar e a casa/família se tornou o Centro do Mundo do homem moderno. Houve uma pulverização do sagrado em pequenos núcleos. E, acrescentamos: o útero se tornou o maior patrimônio desses novos centros.
Vilém Flusser (APUD BAITELLO, 2010, 29) diz os homens são convexos e as mulheres, côncavas. A concavidade exerce uma atração irresistível sobre o convexo, que deseja preenche-la, completa-la. Para o filósofo, essa concavidade feminina vai muito além da questão de gênero ou do consumismo. Segundo Flusser, o feminino é a morte e a natureza, a terra é a grande devoradora do mundo material, o retorno ao vazio sem tempo. A terra, tanto do sentido de planeta como no de elemento material, é a devoradora de tudo e de todos. Ela dá e ela tira. Cria a vida e se alimenta de sua criação. A terra é a concavidade, o princípio feminino que provoca o movimento. O útero é uma de suas imagens mais profundas, viva nas estranhas da terra; mas é apenas uma representação (a Imago Mundi primária) de sua concavidade arquetípica.
A verdadeira solidão é um sentimento de intimidade com a terra. Não é uma solidão mórbida ou depressiva. Não se trata de estar sozinho, mas de estar em contato com a concavidade que nos chama à ação. A intimidade é essa conexão afetiva constante, esse solitário cuidado íntimo como a própria natureza.
Ande como se estivesse beijando a Terra com seus pés, como se estivesse massageando a Terra. As suas pegadas serão como marcas de um selo imperial chamando o agora de volta ao aqui; para que a vida esteja presente; para que o sangue traga a cor do amor ao seu rosto; para que as maravilhas da vida se manifestem, e todas as aflições sejam transformadas em paz e alegria.  (TOCANDO A TERRA - Thich Nhat Hanh)[5]
3. Matriarcado Arcaico
Digamos então sem arrodeio: não há provas arqueológicas consistentes nem evidências científicas de que houve um período matriarcal no desenvolvimento do homo sapiens. Trata-se de uma fantasia anti-patriarcal imaginar que nem sempre houve o domínio masculino nas sociedades humanas.
O único registro relativamente confiável é o de Platão sobre a cultura minoica em Creta antes do período helênico. E mesmo esse relato pode derivar de um mito e do desejo do filósofo. Platão sonhava com uma república utópica. E, não por acaso, a grande maioria dos crentes do matriarcado arcaico são defensores de um mundo mais justo no futuro.
Santo Agostinho, adequando este simbolismo à ideologia cristã, transformou a utopia platônica em objetivo histórico da humanidade, colocando-a no final da História como retorno ao ético paraíso perdido. Para o criador da doutrina do pecado original, a Cidade de Deus existe paralela à Cidade dos Homens (como as realidades sensível e inteligível de Platão). Ao ser expulso do paraíso, o homem dissociou os dois mundos e o retorno à Nova Jerusalém será a reunificação das cidades.
Durante séculos de cristianismo, o matriarcado arcaico sobreviveu como um símbolo selvagem do pluralismo não permitido. Na ótica patriarcal, baseada na família monogâmica e no credo monoteísta, os povos primitivos são sempre politeístas e poligâmicos. Os homens primitivos seriam nômades, caçadores/coletores que viviam em bandos de acordo com as fases da lua, em um tempo cíclico, sem história. O patriarcalismo começou com a vida em sociedade propriamente dita: a agricultura extensiva, a escrita de codificação gráfica fonética, os calendários solares anuais e a vida urbana e sedentária das primeiras grandes cidades. Os partidários do matriarcado arcaico imaginam que essas mudanças e o controle dos homens sobre o feminino, tiveram como fator principal as religiões dos deuses solares.
E essa premissa ideológica foi compartilhada pela antropologia evolucionista do século XIX. Para J.J. Banhofen (Mito, Religião e Direito Materno, 1861), devido à promiscuidade sexual das comunidades primitivas, onde imperava um acasalamento circunstancial, imediato, sem regras ou compromissos estabelecidos, as mulheres com inúmeros parceiros eram o centro da vida social e religiosa. Segundo Banhofen, a evolução da promiscuidade para a família monogâmica ocorreu graças à supremacia dos deuses solares que, progressivamente, substituíram os mitos das deusas-mães. Banhofen influenciou muitos pensadores importantes, entre eles Joseph Campbell.
Lewis Morgan (A Sociedade Antiga, 1877), estudando as relações de parentesco das tribos dos iroqueses (que são matrilineares), acreditou confirmar a teoria do Direito Materno de Banhofen, como sendo o direito-matriz das sociedades humanas. Banhofen havia se apoiado em lendas e em tragédias gregas.
Eliade (1993, 39-102) após estudar diversas mitologias tidas como ‘politeístas’, como a Grega, a Hindu e a Ioruba, observou que deuses celestes como Urano, Olorum e Brahma[6] não tinham altar ou culto e eram ‘pais’ dos outros deuses, a quem entregou a administração do mundo.  Elaborou as categorias de ‘deus oticius’ e de ‘monoteísmo primitivo’. Possivelmente, o politeísmo é uma invenção judaico-cristã.
As diferentes religiões agrárias indo-europeias da antiguidade - que deram origem às culturas 'pagãs' celta, nórdica e eslava – não eram matriarcais, como acredita o feminismo esotérico atual. No caso das religiões da antiga eurásia, Tangri, o 'deus-céu' reinava sobre um panteão de divindades. Há realmente evidências de predomínio das deusas e dos cultos lunares, mas, a presença de mulheres nos tronos ou em postos de mando foram quase sempre fatos isolados e circunstanciais, pois elas na sua totalidade nunca conduziram inteiramente uma sociedade. Nunca houve uma sociedade matriarcal. Isso não significa negar que em várias tribos ou civilizações as mulheres fossem altamente consideradas, que o sagrado feminino fosse mais cultuado que o masculino, nem mesmo que houvesse uma relativa liberdade de gênero antes do patriarcalismo. Nada, no entanto, indica que nesse cenário arcaico houvesse um predomínio social das mulheres sobre os homens ou que os valores femininos fossem dominantes. O mais provável, dentro da lógica evolucionista da ciência, é que o patriarcalismo seja resultando da exacerbação social do comportamento biológico do rebanho humano, presente em outros mamíferos, principalmente entre os símios.
Drauzio Varella (2000) elenca as principais semelhanças de comportamento entre homens e macacos: a dependência por anos dos filhos, disputas violentas dos machos pelas fêmeas, defesa territorial, a mesma importância dada à diferença do tamanho entre os dois sexos da espécie[7] e as mesmas estratégias reprodutivas de cada gênero: a principal tática masculina é a de procurar o acasalamento com diversas fêmeas, fazendo o possível para impedir que outros machos façam o mesmo; e a principal estratégia feminina é a de seduzir o macho que tenha as maiores chances de gerar filhos saudáveis e protegê-los – por isso o interesse pelo macho vencedor, que ascende na hierarquia social (2000, 80-82). A infidelidade feminina, mecanismo de fortalecimento genético da espécie, nesse contexto, era (ou é) pouco frequente e secundária. Mas, a ideia de uma organização grupal centrada em uma ‘rainha matriarcal’ só existe mesmo nos insetos gregários: formigas, abelhas, etc. Tais semelhanças sugerem que a 'poligamia matriarcal' também nunca existiu e que o (que chamamos de) patriarcalismo é uma exacerbação de características biológicas mamíferas, uma institucionalização (pelo uso repetido da força bruta) das estratégias reprodutivas masculinas e femininas do rebanho humano.
Nesse cenário, é fácil entender porque os elementos Terra e Água, associados à alimentação e aos cuidados pessoais, são femininos; e os elementos Ar e Fogo, representando o conhecimento abstrato e a guerra/tecnologia, masculinos. Os homens eram exploradores do universo e as mulheres, as guardiãs de sua intimidade. A institucionalização social desta divisão de domínios separou subjetivamente o masculino do corpo e de suas emoções (da Terra e da Água), como também apartou a mente feminina do saber e do sagrado (o Ar e o Fogo). E, do ponto de vista externo, o crescimento exagerado do Ar e do Fogo, destroem a Água e a Terra.
Dissolver o desequilíbrio ecológico externo implica em harmonizar os elementos dentro de si. Que os homens liquidifiquem seus corações e aterrissem em seus corpos; e que as mulheres se incendeiem e se lacem no espaço sem fim.


[1] Etnografia poética do feitio-escola de Santo Daime, em outubro de 2014, em Guanassés (CE), sob o comando de Alfredo Gregório de Melo.
[2]             Os Rubaiyat de Omar Khayyam - versão em português de Alfredo Braga.
[3] Os registros mais antigos que conhecemos vêm dos Incas. O uso da Ayahuasca como bebida sacramental era restrito a família imperial inca, descendente de Inti, o rei Sol. Conforme relatos históricos, o príncipe Atahualpa se rendeu aos invasores espanhóis e acabou assassinado. Segundo a lenda, o príncipe seu irmão, Huascar, se refugiou na floresta amazônica. Lá divulgou a bebida, que recebeu o seu nome e se difundiu entre várias tribos indígenas, perto da fronteira com o Peru e a Bolívia. O uso da Ayahuasca foi, durante séculos, utilizado por várias tribos indígenas da região. No início do século XX, com o intercâmbio cultural entre índios e seringueiros, a Ayahuasca passou a ser conhecida e usada pelos nordestinos que colonizaram a Amazônia ocidental. Destes contatos surgiram vários grupos sincretizaram o seu uso com o catolicismo popular, normatizando doutrinas de grande penetração urbana. O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) publicou, no dia 25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando o uso religioso da Ayahuasca no Brasil. A resolução estabeleceu regras para que a bebida não seja comercializada ou utilizada fora do contexto religioso. Atualmente, várias pesquisas investigam a utilização de medicamentos para tratamento químico de depressão, neuroses, fobias, síndromes neurológicas, bem como seu uso em processos terapêuticos.
[4]             A experiência de ‘mirar’ ou ter ‘sonhos lúcidos’ se aproxima muito mais de uma supercognição (envolvendo os dois hemisférios cerebrais simultaneamente) do que de uma alucinação ou de apenas ilusões visuais. Supercognição que permite à consciência enraizada no presente ativar as memórias do passado com objetividade visual e prever (ou até mesmo influenciar) acontecimentos futuros, “resolver problemas”, conseguir reverter relações de conflito, submissão ou enaltecimento que se apresentem na própria 'miração'. A Ayahuasca é uma tecnologia de transcendência do tempo/espaço. Segundo Calávia Saez (in LABATE & GUIMARÃES, 2008), quando os Yaminawa tentam explicar o que a Ayahuasca é para eles, usam comparações como o ‘televisão do índio’, o ‘telefone’ e até ‘o avião do índio’.
[5] http://fteixeira-dialogos.blogspot.com.br/p/oracoes-interreligiosas.html
[6] O caso de Brahma é um pouco diferente, mais ainda pode ser incluído na categoria.
[7] Quanto maior o dimorfismo sexual, mais dominadores são os machos e mais desunidas as fêmeas. Quanto menor esta variação, mais as fêmeas são capazes de alianças e menos poder tem masculino.

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